🐟 Os peixes fugiam daquele ponto. Sempre. Até que, numa noite estranha, a rede voltou tão cheia que parecia um presente… ou um aviso.
Juca conhecia cada curva e cada sombra do rio Verde como a palma da sua mão calejada. Sabia dos cardumes preguiçosos que se escondiam sob as raízes da gameleira e das piraputangas ariscas que dançavam na correnteza. Mas a parte funda, ali perto do cemitério de barcos enferrujados, essa era diferente. Uma aura de mistério pairava sobre as águas escuras. As redes voltavam vazias, como se um poder invisível mantivesse os peixes afastados. As histórias corriam soltas entre os pescadores: correntes traiçoeiras, um redemoinho que engolia tudo, até mesmo o espírito de um velho canoeiro afogado.
Naquela sexta-feira, porém, a teimosia de Juca falou mais alto que a superstição. A lua cheia derramava um brilho prateado sobre o rio, e o céu estava cheio de estrelas. "Quem não arrisca...", murmurou, enquanto lançava a rede grande, de malha grossa, na direção da escuridão. O peso dos chumbos a levou para o fundo, e Juca esperou, o silêncio da noite quebrado apenas pelo murmúrio da água.
Os minutos se arrastaram, carregados de uma expectativa tensa. De repente, a corda esticou, firme. Tão pesada que fez os músculos dos braços de Juca protestarem. Chamou Chico, um pescador mais jovem que passava por perto, e juntos começaram a puxar. A rede oferecia resistência, como se estivesse presa em algo no fundo. Mas eles não desistiram, a curiosidade e um quê de apreensão crescendo a cada metro de corda recolhida.
Finalmente, a rede emergiu da água escura. Não havia o brilho prateado de escamas, o movimento frenético de peixes. Em vez disso, um volume disforme e escuro jazia enredado nas malhas. O susto foi imediato.
A rede estava cheia, sim. Cheia de coisas que não pertenciam ao rio. Um pedaço de roupa escura, encharcado e rasgado, agarrava-se às cordas. Ao lado, um sapato de couro, velho mas estranhamente conservado, como se tivesse sido perdido há pouco tempo. E então, entre os nós, um pequeno osso branco, quase translúcido, com a inconfundível forma de uma falange da mão humana.
Juca cambaleou para trás, largando a rede no chão lodoso. Um cheiro nauseabundo subiu, uma mistura de água parada e algo mais... doce e pútrido ao mesmo tempo. O sapato parecia familiar, de um modelo que ele vira na vila não fazia muito tempo. E o osso... a brancura contrastava com a sujeira do rio, como se tivesse sido lavado e polido pela correnteza. Limpo demais para ser antigo.
No dia seguinte, a notícia se espalhou como fogo em palha. A polícia ribeirinha compareceu, observou a macabra pesca, sondou as águas. Mas a conclusão foi fria e burocrática: "Coisa antiga, deve ter vindo de longe com a corrente." Enterraram os restos ali mesmo, na margem lamacenta, sem grande cerimônia.
Mas para Juca, e para todos os que souberam do achado, o rio Verde nunca mais foi o mesmo. Aquele ponto específico tornou-se um local evitado, um lembrete silencioso de que as profundezas guardavam segredos sombrios. E a rede de Juca... ah, a rede. Nunca mais voltou limpa de uma pescaria naquele trecho. Às vezes, um pedaço de tecido desbotado, um botão enferrujado, uma pequena boneca de porcelana com os olhos vazios. Coisas insignificantes, talvez, mas que carregavam consigo o peso de um mistério não resolvido, sussurros de histórias afogadas nas profundezas do rio.
Às vezes, pescar não é sobre o que você quer pegar. É sobre o que quer ser pego. E nem sempre é peixe, amigos da pesca. Às vezes, o rio nos devolve fragmentos de histórias perdidas, ecos silenciosos de um passado que preferíamos não desenterrar. E esses achados, por menores que sejam, podem assombrar nossas pescarias para sempre.
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